domingo, 12 de dezembro de 2010
Santíssima Quaternidade
Com A Arte da Fuga, Bach adota o espírito gótico do quadrivium e conduz o contraponto a quatro vozes ao infinito.
A Arte da Fuga é a última obra instrumental do grande Kantor de Leipzig e, ao mesmo tempo, seu Requiem. Tratase de uma daquelas criações do espírito humano que, como as nove sinfonias de Beethoven, o Fausto de Goethe, as obras de Leonardo da Vinci e Michelangelo, superam a produção artística de toda uma época, como picos solitários de um gigantesco maciço rochoso. Bach trabalhou em A Arte da Fuga durante os últimos três anos de sua vida, de 1747 a 1750. Por ironia do destino, a primeira audição mundial dessa obra-prima só ocoreu quase 200 anos mais tarde, em 26 de Junho de 1927. A Arte da Fuga é, certamente, a obra instrumental mais extensa e mais coerente de Bach. Equando à concepção e estruturação, a mais espiritual de toda a música ocidental. Nessa monumental composição - 20 fugas e cânones a quatro vozes sem indicação de instrumentos -, Bach reúne todos os recursos composicionais deisponíveis e os elabora por meio de um processo arquitetônico de completa interpretação. O desenvolvimento da fuga, o adensamento contrapontístico, a riquesa de inter-relações e variações e o planejamento formal e estrutural cíclio e gigantesco - com suas simetrias e relações, com seus contrários complentares e opostos - permitem que o desenvolvimento temático progrida sem interrupção.
A estética da época é a chamada "teoria dos afetos", segundo a qual a música exprime paixões e emoções como ira, amor, cúme, inveja. Mas a expresão de sentimentos - que existia em Bach sempre dentro do ambiente da coletividade luterana, apenas - desaparece agora por completo. Quanto mais o mundo se inclinava para o sensorial e o sentimental, valorizando a individualidade, tanto mais Bach se afastava de seus contemporânos e refugiava-se no passado, que considerava o "espelho do universo". Bach, que vivia a grandiosa tensão entre o mundo antigo e o novo que se anunciava, já não se importava com a realização sonora de sua arte, cuja realidade se encontrava em longínqua abstração. O trabalho artístico significava para ele uma visão puramente espiritual, e os meios dos quais se servia, uma vez despojados do sensorial, chegaram à sublimação máxima.
Na magnífica estrutura de A Arte da Fuga, deve-se reconhecer o príncipio de ordem da ideologia da Idade Média, o qual domina o macro e o microsmos e, até certo ponto, determinava a filosofia estética, a imagem do mundo de J.S.Bach. Nessa obra, vive o espírito gótico do quadrivium - a quaternidade acadêmica da aritmética, geometria, teoria musical e astronomia. De acordo com o quadrivium, de maior status que o trivium (gramática, retórica e lógica), a música seria não apenas prática sonoro-sensorial, mas, sobretudo, scientia mathematica, espiritual e numericamente definível. Essa severidade, baseada no cálculo especulativo e na proporção, na razão e na ordem, buscava a "harmonia mundi", a manutenção da ordem cósmica total. Bach atribuía à arte a tarefa de servir ao divino-transcendental e procurava exprimir, em sua obra, as antigas leis de medida e proporções que regem o mundo.
A idéia construtiva e a imagem sonora fundem-se em uma unidade superior em A Arte da Fuga. As vozes se sucedem, se misturam e se separam; as frases precipitam-se umas sobre as outras, avançando e retrocedendo em ordem, traçando-se gradualmente e destraçando-se em esforço. Mais admirálvel, entretanto, é a transformação do tema que se repete em alturas diversas, a cada vez com novo caráter - ora majestoso e monumental, ora vigoroso e patético, ora doloroso e triste, ora líico e íntimo, elegíaco ou galante. A Arte da Fuga tomou o compositor até seus últimos dias, tendo sido deixada suspensa e inacabada a fuga final. A morte arrancoulhe a pena das mãos, quando ia introduzir, na última fuga, as notas que correspondiam às quatro letras de seu nome (si bemol-lá-dá-si). Já cego, Bach compôs um tema de profunda tristeza e sem igual na música de nossa cultura. Com A Arte da Fuga termina um dos capítulos mais emocionantes da história da música ocidental.
Fonte: Revista - Bravo! - Agosto 2000 - :3 - No:35
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